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ARQUEOLOGIA DA PSIQUE
Luiz Carlos Mello

Nise da Silveira iniciou um trabalho revolucionário a partir de seu inconformismo com as práticas psiquiátricas utilizadas na década de 40, tais como eletrochoque, insulinoterapia, lobotomia, confinamento. Criando a Seção de Terapêutica Ocupacional no Centro Psiquiátrico Pedro II (Rio de janeiro), busca fundamentar cientificamente esta terapêutica, conduzindo-a não como mera ocupação ou utilização de mão-de-obra nos serviços hospitalares, como era uso na época, mas procurando beneficiar os indivíduos ali internados com atividades que lhes possibilitassem um meio de expressão e de resgate de sua individualidade.

Através desse método, os resultados não demoraram a aparecer: as melhoras clínicas se acentuavam e, dentre as atividades oferecidas, pintura e modelagem se destacaram, gerando uma grande produção, que ela logo percebeu ser um meio de acesso ao enigmático mundo interno do esquizofrênico. Surgem imagens inusitadas, temas e símbolos recorrentes que a intrigam. Reunindo essas obras com o objetivo de desenvolver estudos e pesquisas sobre seus significados, funda então, em 1952, o Museu de Imagens do Inconsciente.

Observava que muitas dessas imagens configuravam formas circulares ou próximas do círculo - símbolos de unidade e ordenação - extremamente semelhantes a imagens utilizadas para meditação ou representação da divindade em religiões orientais (mandalas).

Como pessoas que perderam a unidade do pensamento, instância máxima da consciência, poderiam produzir em grande quantidade os símbolos de unidade? E por quê?

Pesquisadora incansável, resolveu então escrever uma carta ao professor Jung, juntando imagens produzidas por diferentes autores. A resposta de Jung não tardou: eram mesmo mandalas e correspondiam ao potencial autocurativo da psique, em oposição à dissociação, ao estado de confusão psíquica do ser, uma manifestação do inconsciente para compensar a situação caótica vivida por esses indivíduos.

Deste primeiro contato originou-se um relacionamento que não viria a introduzir a psicologia junguiana no Brasil, mas constituir-se-ia também numa nova abertura para melhor compreensão da psicose e dos conteúdos que daí emergem. Confirmava-se, então, que as atividades expressivas, além de possuírem validade terapêutica, eram também excelente meio para o conhecimento dos processos que se desenrolam na obscuridade do inconsciente.

Muitas das imagens surgidas nos ateliês possuíam espantosas semelhanças com representações configuradas através da história da humanidade. (É bom lembrar que nossos autores, internados em hospital público e vindos de classe social menos favorecida, são em sua maioria desprovidos de conhecimentos mais amplos que possam explicar esses fenômenos como meras recordações de algo aprendido). Na tentativa de compreender o significado dessas imagens, Nise, orientada por Jung, começa a pesquisar outras áreas do conhecimento como, por exemplo, mitologia, história da arte e religião.

Como diz Nise, ``essas pesquisas não constituem diletantismo teórico de eruditos. Têm principalmente caráter prático, pois a tarefa do terapeuta será estabelecer conexões entre as imagens emergentes do inconsciente e a situação emocional que está sendo vivida pelo indivíduo.

Aplicando à terapêutica ocupacional as descobertas de Jung, abrem-se novas perspectivas para este método, tanto para neuróticos como para psicóticos. O exercício de atividades poderá enriquecer-se de importante significação psicológica. Compreender-se-á, por exemplo, o valor terapêutico que virá adquirir a proposta do doente mais regredido de atividades vivenciadas e utilizadas pelo homem primitivo para exprimir suas violentas emoções. Em vez dos impulsos arcaicos exteriorizarem-se desabridamente, lhe forneceremos o declive que a espécie humana sulcou durante milênios para exprimi-los: dança, representações mímicas, pintura, modelagem, música. Será o mais simples e o mais eficaz``.

Ao longo dos anos este trabalho vem contribuindo para modificar profundamente o pensamento e as práticas psiquiátricas, servindo de alicerce e inspiração para profissionais, instituições e grupos de estudo e pesquisa em diversas partes do mundo.

Na exposição ora apresentada, poderemos ver alguns exemplos de paralelismo entre imagens espontâneas, atuais, produzidas por internados do Centro Psiquiátrico Pedro II e imagens que constituem achados arqueológicos em distantes épocas e diferentes regiões do mundo. Uma verdadeira viagem através do tempo, desde o período neolítico, passando pela civilização egípcia, indo-persa e grega até a alquimia na Idade Média.

A emergência em nossos dias de conteúdos e símbolos, que fazem parte da história humana em diferentes épocas e locais, comprova a historicidade e a temporalidade da psique.

FONTE: Catálogo - Ultima Atualização: 28/12/2010

 
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