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Nós somos deuses Cezar Britto
27/11/2006
O homem nunca teve vergonha de sua pretensão divina. Criado à semelhança do seu majestoso paradigma, sempre entendeu ser normal o fato da criatura sonhar em ser igual ou superior ao criador. Este é, aliás, o próprio ciclo da vida, mesmo porque todos almejam ser, simultaneamente, onipresente, onisciente e onipotente. Não se pode desprezar que é charmoso ter o poder ilimitado para fazer tudo, estando presente em todos os lugares no mesmo piscar de olhos e, de quebra, ser detentor do saber absoluto. Ser Deus é, sem dúvida, o grande sonho acalentado.
É bem verdade que a realidade, não raro, costuma jogar uma balde de água fria neste pretensioso querer, desmontando impiedosamente o culto à divindade humana. Percebe o homem, a todo instante, que é incapaz de estar presente em vários e distintos locais, sem que prejudique a qualidade da ação ou mesmo a quantidade da dedicação que é exigida para cada situação. Descobre ele, no caminhar da vida, que é difícil continuar sendo um companheiro amoroso, um pai perfeito, um filho exemplar, um amigo presente ou até um ombro carinhoso quando dele se necessitasse. É o frio fato quem demonstra, diariamente, que o pretenso Deus não tem o poder da onipresença, não conseguindo, portanto, desafiar a lógica que o impede de ocupar vários espaços ao mesmo tempo.
O querer ser Deus tem no cotidiano um inimigo cruel, um adversário impiedoso. A crueldade de quem, conscientemente, faz fragilizar certezas e semear dúvidas. Ainda que tenha a certeza do seu sentimento sincero, não consegue o homem convencer e ser convencido da desnecessidade da sua presença ou da sinceridade do seu afeto fisicamente não presencial. Ainda que tenha a doce ilusão de que as parafernálias inventadas pela ciência possam encurtar o tempo e otimizar o espaço, sabe ele que é tudo inútil diante da mudez do interlocutor. Ainda que tenha a confiança do seu gostar, percebe que precisa ser correspondido.
O voar do avião, a interação virtual via internet, os acalentados papos no messenger e os modernos nootbooks são instrumentos incapazes de transmitir a voz do coração ou de superar o poder do carinho que explode das mãos. Não são eles suficientes para substituir o calor da presença humana, tampouco o olhar confortante da cumplicidade companheira. O sentir é parte essencial do dizer. Ainda que caro, moderno e avançado o método adotado para adquirir o dom da onipresença, o homem, intimamente, é forçado a concluir que falha completamente na sua missão de ser Deus.
Mas, paradoxalmente, é esta fragilidade que faz do homem um ser divino. Quando reconhece a sua imperfeição, sublime se torna. Quando descobre a sua ausência, concorre para encurtar distâncias. Quando conhece a sua falha, prepara-se para o acerto. É que somente pode evoluir aquele que reconhece o erro, descobre a omissão e conhece o momento em que falha.
Reconhecendo a capacidade alheia, ainda quando não visível, aumenta-se a possibilidade do aprendizado. Descobrindo que a ausência é sentida, compensa-se com a qualidade da presença. Conhecendo a agressão é possível pedir desculpas, aceitar o perdão ou, o que é melhor, conscientemente esquecer o ocorrido. Nestes e noutros casos, o homem encurta as distâncias, fazendo-se onisciente e onipotente, até porque aprender com os defeitos é um dom divino. A soberba, o orgulho e a arrogância impedem o crescer do corpo e o aperfeiçoamento do espírito.
Nesta mesma linha, o homem se torna divino quando declara o amor à sua amada, ainda quando a reciprocidade parece uma conquista. Abraça carinhosamente o filho, mesmo que o afago seja protocolarmente recebido, Compreende os sentimentos dos parentes, embora acusado de insensível. Aceita as diferenças e birras dos amigos, apesar de não ser aceito nas mesmas pelejas. Aproxima-se dos desconhecidos, até quando os riscos recomendam manter a distância. Sabe a importância do outro, mesmo quando o outro não saiba o que é ser importante. Nós, os homens, somos deuses quando sabemos o real sentido da expressão humanidade.
FONTE: Cinform/Infonet - Ultima Atualização: 28/12/2010
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